segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Dança



Perdi tempo demais observando o homem que dançava em volta das mesas do salão bem iluminado. Ele se balançava em seu paletó multicolorido e às vezes olhava para mim, mas nunca nos meus olhos. Eu não me importava com nada além de sua dança, aquele balanço elétrico e engraçado que me distraiu completamente. O palhaço era divertido.





Minha devoção ao homem de cores brilhantes me fez deixar de vê-la por meses inteiros, desde que me sentara ali. Do meu lugar, numa cadeira pouco especial junto a uma mesa qualquer, ignorei sua existência. Ela, que dançava de forma hipnotizante sobre o palco no fundo do gigantesco salão, estivera fora das minhas vistas. Apesar disso, eu a senti o tempo sem perceber; sentia sua mão, seus cabelos, seu olhar sobre mim. Sentia tudo e não tinha consciência que era a sua influência até que ela desceu do palco sem me avisar.

E ela andava em minha direção. Olhava fixamente dentro dos meus olhos, perfurando até doer, enquanto descia os incontáveis degraus de uma escadinha de vidro frágil. Tentei desviar o olhar para a garrafa cheia de vinho no centro da minha mesa, sentindo agonia. As pontas dos meus dedos estavam dormentes, os lábios formigavam, mas fixei os olhos ali. Beberiquei daquele líquido doce por nove anos e o conteúdo parecia intocado.

O vinho se espalhou pela toalha branca da mesa. A garrafa sumiu. Um barulho de vidro quebrando ao longe chamou minha atenção.

Ela, a dançarina que antes se balançava com graça sobre palco, quebrava a minha garrafa com seus pés descalços. A minha garrafa.

Estava nua. Brilhante. Mascarada. Movimentava-se como serpente, seus cabelos caindo pelas costas como se fossem uma capa. Voavam fios furta-cor emoldurando seu rosto coberto de prata. Espirais vermelhas subiam pela pele do calcanhar à virilha.

Vinha até mim usando meus olhos como guias. Quebrara minha garrafa muito antes de estar realmente perto, mas isso pareceu fazer sentido. Agora caminhava, atravessando o salão nas pontas dos pés.
A cada passo entendia um pouco mais.

Descobri, então, que era a sua mão que queimava dentro da minha cabeça. Dedos de fogo invadiam meu crânio, faziam cafuné em lembranças e as levavam embora. Doía, mas não mais que minhas veias - cada uma delas. De repente percebi que uma parte dos cabelos da dançarina estava lá dentro, correndo em mim. Eram o meu sangue. Isso também doía, mas não mais que meus olhos.

E Ela continuava olhando pra mim. Olhei de volta, sabendo que não podia gritar. Que cor de olhos era aquela?

Aproximava-se rápido e eu quis fingir que não tinha medo. Pude ouvir o som de saltos acompanhando cada passo nu.

Que porra de cor de olhos é essa?

Ela continuava a vir e observei melhor a máscara prateada. Eu não sabia mais se era máscara ou se era apenas seu rosto liso e duro. Também não lembrava mais onde ficava o meu rosto.

Que porra, que cor?

Seus olhos me queimavam. Eu queimei de volta.

Que caralho de...

Ela deu o último passo, beijou-me na testa e fechei meus olhos. Finalmente vi a cor certa.

Eram pretos, muito pretos os olhos dela.

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